Memórias da C&T – Série Produção Científica Brasileira
LUIZ DE CASTRO FARIA, TAMBÉM UM ARQUEÓLOGO
Tania Andrade Lima
Departamento de Antropologia do Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pesquisadora do CNPq
Currículo na Plataforma Lattes da Dra. Tania Andrade Lima
Luiz da Castro Farias - Arquivo de História da Ciência, Mast/MCT
Um dos pais fundadores da Antropologia no Brasil, Luis de Castro Faria (1913 – 2004), Professor Emérito do
Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense, desempenhou um
influente e decisivo papel não apenas nessa disciplina, mas também na Arqueologia brasileira, este último pouco
divulgado.
Sua trajetória neste campo e a contribuição dada por ele a este domínio do conhecimento nas décadas iniciais da
sua vida acadêmica, que ele designava como ‘o pórtico da minha carreira’, acabaram em grande parte ofuscadas pela
dimensão que ele viria a alcançar posteriormente no âmbito mais amplo da Antropologia. Por essa razão, no momento
em que o Centro de Memória do CNPq propõe a edição e publicação dos relatórios de pesquisa recebidos pela
agência entre os anos de 1951 e 1986; e inaugura, com o relatório de arqueologia do Prof. Castro Faria, as
Memórias da C & T – Série Produção Científica Brasileira, torna-se particularmente oportuno apresentar, para
além dos especialistas da área, a sua vigorosa e conseqüente atuação em defesa da pré-história brasileira.
Castro Faria, museólogo de formação, tornou-se ‘praticante gratuito’ do Museu Nacional em 1936, passando no
ano seguinte à condição de ‘assistente voluntário’ da Divisão de Antropologia e Etnografia
(nota 01), sob a
orientação de Heloísa Alberto Torres (nota 02). Diretora da
instituição entre 1937 e 1955, ela foi fortemente influenciada por Franz Boas - uma das mais destacadas figuras
da Antropologia norte-americana na primeira
metade do século XX - com quem mantinha contato, a exemplo de Edgard Roquette Pinto, seu antecessor no cargo
de direção entre 1927 e 1936.
A perspectiva inclusiva que Boas introduziu na Antropologia americana, abarcando tanto os aspectos físicos quanto
os culturais da condição humana nos chamados quatro campos antropológicos - arqueologia, antropologia física,
etnologia e lingüística – foi seguida tanto por Roquette Pinto quanto por ela. D. Heloísa, como era chamada, ela
mesma antropóloga, arqueóloga e etnóloga, orientou Castro Faria nesse modelo de capacitação multifacetada, de tal
forma que ele não apenas recebeu formação específica, como transitou com desenvoltura e competência por esses
domínios. A influência desse modelo foi profunda no Museu Nacional, sendo visível até hoje na estrutura
quadripartida do seu Departamento de Antropologia³(nota 03).
Ainda na Escola de Museologia, no Museu Histórico Nacional, Castro Faria recebeu uma formação superficial em
Arqueologia, tendo como professor Angione Costa. No Museu Nacional, seu interesse pelo estudo do passado
pré-histórico se renovou e se aprofundou, estimulado sobretudo por sua mentora. Na Antropologia Física, ele teve
como orientador Bastos d’Ávila, tendo participado ainda do curso ‘Fundamentos Anatômicos da Antropologia Física’,
ministrado por Pimenta de Melo. Na Etnologia, foi orientado por Raimundo Lopes, que chegou a fazer incursões
também pela arqueologia do Maranhão, seu estado natal. No campo da Lingüística, foi aluno do ‘Curso
Extraordinário de Lingüística’, no Museu Nacional, e também do ‘Curso de Lingüística Geral’, ministrado por
Mattoso Câmara Jr., qualificando-se portanto para o exercício da Antropologia na sua acepção mais ampla.
Em 1939, ano seguinte da famosa Expedição Etnográfica à Serra do Norte, da qual participou como representante
brasileiro acompanhando Claude Lévi-Strauss, Castro Faria ingressou no quadro técnico do Museu Nacional,
inicialmente como auxiliar, passando em seguida para a categoria de naturalista interino. A partir daí, ele
intensificou as pesquisas de campo em etnografia e em arqueologia. Em viagem de estudos ao norte do Estado do
Rio de Janeiro, pelos municípios de Campos e São João da Barra, documentou a ocupação pré-colonial tupi dessa
região através de cerâmicas encontradas na barranca da margem esquerda do Rio Paraíba, a montante da cidade de
Campos. Castro Faria empreendeu nesse mesmo ano uma excursão a Santa Catarina, e essas duas viagens constituíram
a etapa inicial de uma série de bem sucedidas investigações arqueológicas, particularmente neste último estado.
Dois anos mais tarde, em 1941, ele fez uma excursão a Mato Grosso, com o objetivo de analisar a viabilidade do
desenvolvimento de pesquisas no Pantanal mato-grossense.
No norte do Rio de Janeiro, ele iniciou, em 1942, uma série de pesquisas sistemáticas sobre a ocupação de grutas
e abrigos-sob-rocha na encosta de diferentes ramificações da Serra do Mar, que se estenderiam pelos anos
seguintes. Tendo investigado um abrigo em Santa Maria Madalena, de lá retirou fragmentos de esqueletos e vasos
cerâmicos.
Figura 1. No Jardim das Princesas, Museu Nacional, em março de 1939: da esquerda para a direita, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes, Charles Wagley, Heloísa Alberto Torres, Luiz de Castro Faria, Raimundo Lopes e Edson Carneiro. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDN 14.14.150 F 014).
Ainda na condição de naturalista interino, chefiou a Divisão de Antropologia e Etnografia até 1944, quando se tornou finalmente naturalista efetivo do Museu Nacional por concurso público de provas e títulos. Segundo suas próprias palavras, “em uma época em que se exigia igual proficiência em Etnologia Geral, Arqueologia e Antropologia Física”. No ano seguinte, suas viagens de estudo se intensificaram: ele foi a São Paulo, estudar as coleções arqueológicas dos museus paulistas, especialmente do Museu do Ipiranga, e também a Rio Claro, examinar coleções líticas particulares que seriam adquiridas posteriormente pelo Museu Nacional; a Laguna, em Santa Catarina, para pesquisar o Sambaqui da Roseta; a Cerca Grande, em Minas Gerais. Foi ainda ao Espírito Santo, visitar grutas e abrigos e planejar uma pesquisa sobre os sambaquis da região. Nesta última, ele começou a conceber medidas concretas para a preservação desses sítios em todo o território nacional, duramente atingidos pela exploração econômica predatória para o fabrico de cal, adubo, ração para aves, pavimentação de estradas, entre outros usos.
Figura 2: Luiz de Castro Faria, com seu jaleco de naturalista, em foto sem data, mas possivelmente da segunda metade da década de 1940. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDN 34.10.198F).
Suas investigações sobre os sambaquis meridionais só ganharam efetivamente impulso dois anos mais tarde, em 1947,
quando ele fez uma excursão ao Paraná e a Santa Catarina, ao longo de dois meses, com o objetivo de reunir
elementos para pesquisas futuras e desenvolver um plano de estudos sistemáticos, apresentado à direção do Museu
Nacional. Percorrendo intensivamente a região, ele registrou vários sítios, fotografou-os detalhadamente e
examinou os que considerou como os mais importantes, testemunhando sua destruição em ritmo vertiginoso. Seus
objetivos eram “fazer um registro, tanto quanto possível completo, de todas as jazidas conhecidas, com anotações
circunstanciadas sobre os seguintes aspectos, entre outros:
a) localização exata;
b) composição malacológica e características morfológicas;
c) possibilidades práticas de exploração e coleta de material arqueológico”, e,
como objetivo final, “assentar a escolha de uma jazida para o primeiro trabalho de escavação arqueológica com
estratigrafia rigorosa, num conhecimento direto dos vários tipos de jazidas e das diferentes regiões”
(nota 04).
Figura 3. Viagem de estudos aos sambaquis do litoral do Paraná: em prospecção realizada em 12 de outubro de 1947, vê-se Castro Faria à esquerda; ao centro, de chapéu, Loureiro Fernandes; à direita, Carlos Stelefeld. Foto de Vladimir Kozak Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDA 06.12.140 F).
Nesse mesmo ano, Castro Faria iniciou um trabalho de leitura crítica e de revisão completa da bibliografia até
então existente sobre os sambaquis, para corrigir “generalizações descabidas e estereotipias comprometedoras”
(nota 05).
Estudando-os a partir de diferentes pontos de vista, debateu com especialistas brasileiros seus aspectos
geológicos e malacológicos, tendo discutido seus aspectos antropológicos na seção do Rio de Janeiro da Associação
de Geógrafos Brasileiros, em conferência sobre esse tema. Três anos mais tarde, o Conselho Nacional de Geografia
emitiria a Resolução nº 289, em 5 de setembro de 1950, recomendando aos poderes públicos competentes a proteção e
conservação de grutas naturais e sambaquis. Essa Resolução foi encaminhada pelo presidente do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística ao Governador de Minas Gerais, Milton Campos. Em seu artigo 2º, ela
“recomenda(va) particularmente a proteção da Gruta de Lagoa Santa e dos sambaquis de Laguna e Saquarema, tendo
em vista, nestes últimos, as conseqüências decorrentes de sua intensa exploração comercial”. Não por acaso,
essas foram áreas de pesquisa de Castro Faria, de tal forma que esse artigo da Resolução dá a medida do seu
esforço de convencimento junto aos geógrafos em prol da preservação dos sítios arqueológicos.
Nos anos que se seguiram, foram intensificadas as palestras e conferências sobre esses sítios, bem como as
pesquisas de campo em Santa Catarina, mais particularmente em Laguna. Em 1950/51 foi realizada a escavação do
Sambaqui de Cabeçuda, ameaçado de destruição iminente, naquela que se tornaria sua pesquisa de campo mais
relevante na Arqueologia. Nesse sítio foram por ele recuperados inúmeros artefatos e os restos ósseos de mais
de duas centenas de indivíduos, uma amostra de dimensões sem precedentes na arqueologia brasileira.
Figura 4. Castro Faria recuperando restos humanos no Sambaqui de Cabeçuda, em 1950/51. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDN 14.14.150 F 021).
Em seus relatórios da década de 1950
(nota 06), Castro Faria foi expondo pouco a pouco - de 1950 em diante e à medida que
avançava nas pesquisas - a tragédia do Sambaqui de Cabeçuda, um dos maiores e mais imponentes do litoral
meridional. Selecionado em seu projeto, dentre todos os demais, para uma intervenção detalhada, em função da
exploração da qual vinha sendo alvo, Cabeçuda já apresentava então 1/10 de seu volume original, reduzido a um
bloco testemunho do que tinha sido no passado. Quatro anos depois, ele relataria em 1954, em tom desolador, a
continuidade da destruição implacável e a desfiguração total do sítio, então considerado por ele como de todo
inviabilizado para estudos estratigráficos.
Foi em 1951 que ele encaminhou ao Presidente do Conselho Nacional de Pesquisas seu primeiro pedido de bolsa de
estudos para o desenvolvimento do projeto sobre os sambaquis de Santa Catarina, ora divulgado pelo CNPq. No
documento ele apresentava:
a) O problema dos sambaquis, centrado ainda no debate entre os que defendiam se tratar de um fenômeno cultural e
os que propugnavam a origem natural desses sítios, sendo essa última posição a que justificava sua exploração
impiedosa para fins econômicos e acelerava de forma brutal sua destruição;
b) Primeiros trabalhos sistemáticos para a solução definitiva do problema dos sambaquis, onde ele apresentava o
plano de estudos por ele desenvolvido desde 1947 e as etapas já executadas: de início, o exame crítico da
bibliografia especializada, o levantamento tanto quanto possível completo desses sítios nos estados do Paraná e
Santa Catarina, e o exame direto das jazidas mais importantes. E na segunda etapa, já em andamento, a escavação
de uma delas, no caso, o Sambaqui de Cabeçuda, onde ele aplicava de forma convergente seus conhecimentos em
arqueologia e antropologia biológica; e, por fim,
c) A impossibilidade de prosseguir ou mesmo de completar a pesquisa iniciada, onde ele expunha suas condições de
trabalho e o salário aviltante após dez anos de serviço público, que o impediam de manter dignamente sua família.
Tendo que aceitar toda sorte de trabalho remunerado, ele não conseguia tempo para dar continuidade à pesquisa de
Cabeçuda, razão pela qual solicitava uma complementação mensal aos seus vencimentos. Ao mesmo tempo, dirigia um
apelo ao Conselho Nacional de Pesquisas pela “proteção imediata dos sambaquis, jazidas arqueológicas de
inestimável valor para o estudo da pré-história brasileira”. Como referências pessoais, foram apresentados ao
CNPq três grandes nomes: Heloísa Alberto Torres, Edgard Roquette Pinto e Rodrigo Mello Franco de Andrade, então
à frente da Diretoria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Figura 5. Em 1950/51, o que restava do ainda majestoso Sambaqui de Cabeçuda, um dos maiores do litoral meridional, quando selecionado por Castro Faria para escavações sistemáticas. A área escavada por ele corresponde ao corte em U feito no topo, na porção anterior. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDA 05.08.067 F 003).
Figura 6. Perfil estratigráfico da porção remanescente do Sambaqui de Cabeçuda documentado durante as pesquisas de Castro Faria, exibindo a complexidade do processo da sua construção. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDN 17.14.219 F 009).
Figuras 7 e 8. Desmonte do Sambaqui de Cabeçuda (acima) e a caieira onde eram processadas suas conchas (abaixo), configurando o dramático processo da sua destruição, documentado em 1947 por Castro Faria. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDA 05.08.068 F 004 e CFDA 05.08.066 F 007).
O pedido de bolsa feito ao CNPq, encaminhado pela direção do Museu Nacional em 30 de outubro de 1951,
juntamente com solicitações de outros pesquisadores da instituição, a saber: Walter Curvelo, para pesquisas
sobre meteoritos; Ney Vidal, para pesquisas paleontológicas em jazidas pleistocênicas; João Moojen de Oliveira,
para pesquisas sobre primatas do Brasil; Newton Santos, para o recenseamento da fauna do então Distrito Federal;
Fernando Segadas Viana, para pesquisa ecológica sobre as comunidades vegetais do Distrito Federal e Estado do
Rio de Janeiro, totalizando seis pedidos, foram agrupadas no Processo nº 493/51, como se vê nos documentos
trazidos agora à luz.
Em junho de 1952, Carlos Chagas, então chefe do Setor de Pesquisas Biológicas do CNPq (1951 – 1955), emitiu
parecer favorável à concessão das bolsas de pesquisa, reconhecendo as penosas condições de trabalho dos
solicitantes, enaltecendo o conhecimento produzido no âmbito do Museu Nacional e a abnegação dos seus
qualificados pesquisadores. Castro Faria aparece indicado para a concessão da bolsa no topo da relação dos
naturalistas, tendo começado a receber o benefício em setembro daquele ano. Entre 1952 e 1957 ela foi
sucessivamente renovada, sempre em nível de pesquisador, tendo passado à categoria de chefe de pesquisa a partir
de 1958 e até 1962.
A década de 1950 trouxe-lhe oportunidades que favoreceram um salto qualitativo em sua formação e atuação
profissionais, permitindo que ao longo dela ele viesse a assumir a participação, representação, condução ou
presidência de diferentes centros, organizações, conselhos e institutos. Sem dúvida alguma esse foi o período
mais intenso e produtivo de sua vida acadêmica como arqueólogo. Inicialmente, graças a uma bolsa de estudos
concedida pela Unesco para o período de setembro de 1952 a março de 1953, ele visitou vários países da Europa
para um aperfeiçoamento nos campos da Antropologia. Na Arqueologia, seu foco nessa viagem foram métodos de
pesquisa arqueológica e a legislação para a proteção de sítios arqueológicos. Na França, onde passou quatro
meses, ele foi recebido como estagiário no Musée des Arts et Traditions Populaires para estudar a organização
de pesquisas e de exposições de etnografia regional, tendo freqüentado ainda a École d’Anthropologie e o
Institut d’Ethnologie em Paris.
Na Inglaterra, permaneceu dois meses como estagiário da cadeira de Antropologia do University College em Londres.
Visitou as Universidades de Oxford e Cambridge, além de vários museus de arqueologia e etnologia. Foi também à
Suíça, Áustria, Espanha e Portugal, apresentando comunicações em congressos internacionais na condição de
delegado do Brasil. Em setembro de 1952, expôs no Congresso de Americanistas realizado em Cambridge, Le
problème des sambaquis du Brésil. Récentes excavations du gisement de Cabeçuda (Laguna, SC). No IVe. Congrès
International des Sciences Anthropologiques et Ethnologiques, realizado em Viena, também em 1952, fez a
comunicação Sculptures en pierre des paléoamerindiens de la côte méridionale du Brésil: les zoolithes de SC.
Ambos os trabalhos foram posteriormente publicados nas atas dos dois congressos. Em janeiro de 1953,
apresentou, em sessão presidida por Lévi-Strauss e vice-presidida por ele mesmo, o trabalho Les sambaquis du
sud du Brésil – resultats de récentes excavations d’un gisement de Laguna (État de Santa Catarina), publicado
posteriormente no Journal de la Société des Americanistes.
De volta ao Brasil, Castro Faria retomou as pesquisas arqueológicas em 1954, promovendo viagens de estudo a Santa
Catarina, Paraná e São Paulo. Em 1955, ele retornou à chefia da Divisão de Antropologia do Museu Nacional, onde
permaneceria até 1963. Embora a essa altura já com seus interesses mais fortemente direcionados para a
Antropologia propriamente dita, tendo se tornado, entre 1954 e 1956, o primeiro presidente da então recém-fundada
Associação Brasileira de Antropologia – ABA, suas publicações e palestras nessa década atestam que, não obstante
o foco voltado para essa disciplina, ele continuava sustentando um forte interesse pela Arqueologia e pela
Antropologia Biológica. Em 1955 ele fez duas comunicações no XXX Congresso Internacional de Americanistas,
realizado em São Paulo, respectivamente sobre ‘A formulação do problema dos sambaquis’ e ‘O estado atual da
Antropologia Física no Brasil’. Em 1956, fez a palestra ‘Considerações em torno do chamado problema dos
sambaquis’. Em 1957, publicou na Folia clinica et biologica o trabalho ‘Anatomia e Antropologia: alguns
problemas de ensino’. Em 1958, ele presidiu a sessão de Antropobiologia na I Reunião Brasileira de Genética
Humana e ministrou um curso de Especialização em Antropologia Física no Museu Nacional. Em 1959, publicou
‘A arte animalista dos paleoamerindios do litoral’, nas Publicações Avulsas do Museu Nacional, e ministrou um
curso de Teoria e Método em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná.
Em 1960, reproduziu esse mesmo tema no Ciclo de Palestras Culturais do Museu Nacional, onde apresentou ainda
‘Considerações acerca das pesquisas em andamento nos sambaquis do litoral sul’.
Em 1956, como resultado de uma cooperação entre o Museu Nacional e o University of South Dakota Museum,
Castro Faria firmou um acordo para a vinda ao Brasil de Wesley R. Hurt, seu diretor e professor, com a finalidade
de realizar pesquisas na região de Lagoa Santa, Minas Gerais. Com uma bolsa da American Philosophical Society,
Hurt investigou abrigos com pinturas rupestres em Cerca Grande, naquela que Castro Faria designou como a primeira
pesquisa de fato científica na região de Lagoa Santa, e da qual participou durante um mês.
Em 1957, uma nova oportunidade levou Castro Faria ao exterior, agora, aos Estados Unidos, com uma bolsa concedida
pela National Academy of Sciences / National Research Council (Exchange Visitor Program), onde permaneceu por
três meses em visita a algumas das melhores universidades norte-americanas, fazendo contatos com renomados
arqueólogos para estabelecer cooperações. No Museu de História Natural de Nova York esteve com Junius Bird, que
então desenvolvia pesquisas na Patagônia e no Chile, tentando motivá-lo para a questão dos sambaquis e para uma
cooperação em datações radiocarbônicas. Na Universidade de Michigan em Ann Arbor, esteve com James Griffin,
também em busca de apoio, no caso, para análises de aminoácidos em conchas dos sambaquis de Santa Catarina.
Em seus documentos pessoais há uma caderneta com anotações sobre essa viagem e nela consta também um encontro com
Gordon Willey, do Peabody Museum of Archaeology and Ethnology, Departamento de Antropologia da Universidade de
Harvard, em Boston, um dos pesquisadores mais influentes na arqueologia norte-americana da época. Willey, que
então coletava dados para o seu ambicioso projeto de construção de uma síntese para a arqueologia norte, centro e
sul-americana(nota 07), interessou-se pela documentação levada por Castro Faria sobre os sambaquis, que pouco conhecia.
Como resultado desse encontro, em novembro daquele mesmo ano, Willey escreveu para Castro Faria. Levando adiante
a proposta de cooperação entre a Harvard University e o Museu Nacional, ofereceu seu aluno Alan Lyle Bryan para
trabalhar especificamente em um projeto sobre os sambaquis do litoral meridional, cujos resultados seriam
utilizados em sua tese de doutorado. Alan Bryan, que já tinha familiaridade com esse tipo de sítio em função de
escavações feitas em shellmounds nos Estados Unidos e no Canadá, veio para o Brasil com uma bolsa da OEA,
complementada com uma concessão da Doherty Foundation of New York. Castro Faria e ele visitaram juntos sítios nas
baías de Paranaguá e Guaratuba, no Paraná, e Ilha de São Francisco, no norte de Santa Catarina, porém Bryan
acabou se dedicando a uma escavação intensiva no sambaqui Forte Marechal Luz, em Santa Catarina.
Figura 9. Em seu caderno de viagem aos Estados Unidos, Castro Faria reproduziu o que provavelmente deve ter sido um painel de um dos museus visitados, sobre a construção de um sambaqui (How a shellmound grows), através do ciclo de vida de um de seus habitantes, o imaginário Joe Elk (“Zé Alce”). Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDA 11.01.0005.)
Ainda em 1957, foi feita uma nova viagem de estudos, primeiro a São Paulo e em seguida ao Paraná, para uma
reunião do conselho científico do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas – CEPA da Universidade do Paraná,
criado no ano anterior por iniciativa de José Loureiro Fernandes, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Juntamente com Fernando Altenfelder Silva, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, e Paulo Duarte, da
Comissão de Pré-história de São Paulo, Castro Faria fazia parte desse Conselho, a convite de Loureiro Fernandes.
Nessa reunião, iniciada em São Paulo e concluída no Paraná, foram avaliados os trabalhos desenvolvidos naquele
ano, em especial os do arqueólogo francês Joseph Emperaire em sambaquis paranaenses, e traçadas as diretrizes
básicas da programação para 1958, fortemente calcada em intercâmbios. Estava prevista nesse encontro a
participação de Castro Faria nas escavações realizadas por Emperaire no Sambaqui do Guaraguaçu, que acabou
inviabilizada por fortes chuvas.
O CEPA surgira em decorrência de uma recomendação da CAPES para que fosse criado, no âmbito da Universidade
Federal do Paraná, um centro de ensino e pesquisas em Arqueologia. Capitaneado por Loureiro Fernandes e com apoio
do CNPq, foi transformado em um ativo núcleo de formação atrelado a um intenso programa de pesquisas,
desenvolvidos ambos principalmente por arqueólogos estrangeiros, mas também por brasileiros, a convite de
Loureiro Fernandes. Recebendo alunos de diferentes unidades da federação, o CEPA foi responsável pela primeira
geração de arqueólogos formados de maneira mais sistemática no país
(nota 08).
Desde 1952, Loureiro Fernandes vinha viabilizando a atuação de profissionais estrangeiros na arqueologia
paranaense, tendo acolhido um casal de arqueólogos refugiados da Iugoslávia, Elfriede Stadler e Adam Orssich de
Slávetich, para pesquisas em sambaquis paranaenses. Com a criação do CEPA, entre os estrangeiros vieram como
convidados o casal francês Annette Laming e Joseph Emperaire, para ministrar cursos com aulas práticas em
sambaquis do Paraná, indicados por Paul Rivet, do Musée de l’Homme de Paris; Wesley Hurt, já referido
anteriormente; Betty Meggers e Clifford Evans, do Smithsonian Institution, e Peter Paul Hilbert, que
pesquisavam a arqueologia da Amazônia. Joseph Emperaire faleceu prematuramente em pesquisa de campo na
Patagônia, mas Annette Laming e o casal Evans e Meggers, sobretudo esta última, viriam a ter uma influência
profunda e duradoura na Arqueologia Brasileira, direcionando os rumos que a disciplina tomaria no país.
Entre os brasileiros, ministraram cursos no CEPA Castro Faria e Oldemar Blasi, este último colaborando com
Wesley Hurt. A Castro Faria coube oferecer a disciplina sobre Teoria e Método em Arqueologia, mencionada acima,
em 1959.
O relatório de atividades ora divulgado pelo CNPq é referente a esse período de 1957/1958, um biênio no qual
Castro Faria dedicou-se intensamente à Arqueologia, ainda que na condição de chefe da Divisão de Antropologia e
Etnografia do Museu Nacional. No relatório ele discorre também sobre essas atividades, afirmando que “assumimos
não só todos os encargos administrativos da Divisão, mas também, como prerrogativa que jamais adjudicaremos, a
responsabilidade de todo o planejamento e da supervisão das atividades técnico-científicas desse órgão”. Nessa
frase, ele deixa clara a intensidade do seu entendimento, envolvimento e comprometimento com a Antropologia no
seu sentido mais amplo. Ao longo de toda a trajetória dessa Divisão, posteriormente Departamento de
Antropologia, ele foi sem dúvida o melhor preparado para o exercício dessa função, não apenas por essa perspectiva
expandida, mas sobretudo pelo domínio que tinha dos chamados four fields, para os quais fomentou todo o tempo
atividades de ensino e pesquisa. Nessa posição por dez anos, ele iria deixá-la somente para assumir a direção
do Museu Nacional, entre 1964 e 1967.
Depois de Lagoa Santa, em 1956; da excursão ao litoral sul com Alan Bryan, em 1957/58; novamente ao sul e também
a Casemiro de Abreu, no Rio de Janeiro, em 1958, Castro Faria continuou ainda mantendo um ritmo intenso de
viagens de estudo até o início da década de 1960: foi à região centro-meridional (1959), a São Paulo, Rio de
Janeiro e Espírito Santo (1960), e novamente ao Paraná e Santa Catarina (1961), para pesquisas arqueológicas
e antropológicas. Em maio desse mesmo ano, Castro Faria recebeu no Museu Nacional o professor de Antropologia
da University of Wisconsin, David A. Baerreis, apresentado por Clifford Evans para realizar investigações
arqueológicas em sítios cerâmicos de Araruama, Rio de Janeiro, no âmbito de um programa de cooperação. Ambos
se dedicaram a formular problemas de pesquisa relacionados aos grupos Tupi que ocuparam essa região, tendo
realizado escavações sistemáticas e analisado o material recuperado nessas intervenções para responder às
questões por eles levantadas.
Esse foi um período de intensas correspondências com arqueólogos brasileiros e também com estrangeiros, como Rex
Gonzalez e Juan Comas, e, em especial, aqueles em atividade no Brasil, como Clifford Evans e Betty Meggers, com
os quais desenvolveu uma relação estreita e amigável; o casal Emperaire, Wesley Hurt, Alan Bryan, Peter Paul
Hilbert e Adam Orssich. Os sul-americanos J. M. Cruxent e Luis Guillermo Lumbreras também aparecem em sua
correspondência. Entre os brasileiros, Loureiro Fernandes foi, na condição de grande e fraterno amigo, seu
interlocutor mais próximo desde os anos 40, e a quem Castro Faria se aliou no movimento de proteção aos sambaquis.
Foi precisamente nessa década de 1950 que começaram a surtir efeitos algumas movimentações anteriores em direção
à criação de dispositivos legais de proteção a esses sítios, impulsionados sobretudo pela indignação dos três
pesquisadores que, trabalhando com sambaquis em diferentes unidades da federação, assistiam impotentes a sua
destruição em ritmo vertiginoso: Loureiro Fernandes, Paulo Duarte e Castro Faria.
Ações em defesa dos sambaquis haviam começado ainda nas décadas anteriores em São Paulo, com Paulo Duarte, e no
Paraná, com Loureiro Fernandes. Este último havia ocupado previamente a Secretaria de Educação e Cultura do
Estado do Paraná e a direção do Museu Paranaense, por ele reestruturado. A sua atuação, na década anterior,
liderando um grupo interessado, tinha resultado na aprovação da Lei nº 33, de 1948, a primeira destinada à
proteção a sítios arqueológicos - no caso, especificamente as vilas espanholas e as reduções jesuíticas dos
séculos XVI e XVII no Paraná. Com poder de convencimento, ele conseguiu sensibilizar o então Governador do
Estado, Bento Munhoz da Rocha Netto, para a causa dos sambaquis, tendo obtido dele um diploma legal de proteção
a esses sítios, o Decreto nº 1.346, de 29 de maio de 1952. No ano seguinte, a aprovação de um dispositivo mais
forte, a Lei nº 1.211, de 16 de setembro de 1953, trouxe condições mais efetivas para a coibição da exploração
econômica dos sambaquis no nível estadual, priorizando a pesquisa científica nesses sítios
(nota 09). Cumpre observar que
Castro Faria, por sua vez, fez uma palestra sobre sambaquis na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, em 1951.
Esta parece ter sido uma ação para conscientizar e sensibilizar o poder legislativo catarinense para a
necessidade da proteção legal desses sítios, o que efetivamente viria a ocorrer anos mais tarde, em 1955,
com a criação da Lei Estadual nº 228, dispondo sobre sambaquis e outras jazidas arqueológicas
(nota 10).
Paulo Duarte, por seu lado, destacado jornalista e advogado de formação humanista, era um grande apreciador e
estudioso dos sambaquis paulistas. Exilado em Paris em decorrência da ditadura Vargas, à qual se opunha
fortemente, ele estreitou seus contatos com Paul Rivet, diretor do Musée de l’Homme, onde expandiu seus
conhecimentos sobre pré-história. Retornando ao Brasil, Paulo Duarte lançou-se em uma bem sucedida campanha
junto ao governador de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez, pela criação da Comissão de Pré-história, com
atribuições definidas de preservação e pesquisa dos sítios arqueológicos paulistas. Nogueira Garcez baixou
dois decretos, o primeiro datado de dezembro de 1952, criando e definindo as atribuições da Comissão de
Pré-história; e o segundo, de agosto de 1953, reservando exclusivamente à pesquisa científica todos os
sítios pré-históricos de São Paulo. Vitorioso no nível estadual, Paulo Duarte lançou-se a partir daí em um
projeto mais arrojado, a criação de uma lei federal de proteção aos sambaquis. Os dispositivos estaduais
tinham sido uma importante conquista, sem dúvida, mas de eficácia restrita, na medida em que as concessões para
exploração de concheiros continuavam a ser emitidas em nível federal, com base no Código de Minas (Decreto-lei
nº 1.985, de 1940).
Interlocuções contínuas dele com pelo menos seis Ministros da Agricultura resultaram totalmente inúteis, até que,
por intermédio do Deputado Lauro Gomes, Paulo Duarte chegou ao Ministro da Educação Clóvis Salgado, que o
apresentou ao gaúcho Mario Meneghetti, Ministro da Agricultura do Governo Juscelino Kubitschek (1956 – 1960).
Meneghetti compreendeu a relevância da causa e levou o assunto ao Presidente, que chamou Paulo Duarte ao Palácio
do Catete para um encontro. Kubitschek se entusiasmou com a proposta e determinou a formação de um grupo para
elaborar um anteprojeto de lei
(nota 11).
Em 08 de maio de 1957, o Ministro de Estado dos Negócios da Agricultura publicou no Diário Oficial da União uma
portaria designando uma comissão para elaborar um projeto de lei “destinado à proteção do patrimônio
pré-histórico e arqueológico nacional”. Foram nomeados Rodrigo Mello Franco de Andrade, diretor do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, e José Cândido de Melo Carvalho, diretor do Museu Nacional, ambos do Ministério
da Educação e Cultura; Paulo Duarte, diretor da Comissão de Pré-história de São Paulo; José Loureiro Fernandes,
da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade do Paraná; Benjamin Campos, consultor jurídico do
Ministério da Agricultura, e Avelino Inácio de Oliveira, diretor geral do Departamento Nacional de Produção
Mineral, do mesmo Ministério
(nota 12).
Castro Faria não integrou essa comissão, possivelmente por uma questão
hierárquica, tendo sido o Museu Nacional representado por seu diretor. Sendo José Cândido de Melo Carvalho um
zoólogo, entomologista, e sem qualquer familiaridade com o tema, é provável que Castro Faria tenha fornecido a
ele os subsídios necessários para participar da reunião e da elaboração do texto.
Não foi possível recuperar com quantas propostas de anteprojeto essa comissão trabalhou, mas pelo menos duas com
certeza estiveram à disposição do grupo. Desde 1955, Paulo Duarte tinha pronta uma proposta de decreto federal
de proteção aos sambaquis brasileiros, com apenas cinco artigos e uma justificativa sucinta. Esse documento, não
assinado, encontra-se arquivado no Iphan, e tem escrito no alto da página, em letra manuscrita (de Rodrigo Mello
Franco de Andrade?) os dizeres “anteprojeto redigido pelo dr. Paulo Duarte, maio de 1957”
(nota 13). Por seu lado, Castro
Faria tinha feito também um esboço bem mais abrangente, posteriormente publicado como de sua autoria e nunca
contestado, que foi o que de fato prevaleceu e fundamentou o texto da Lei.
Castro Faria sempre afirmou ser o autor do anteprojeto que resultou na Lei nº 3.924 (comunicação pessoal).
No relatório ao CNPq, datado de 1958 e ora divulgado, ele se justificava por não ter ainda publicado, até aquela
altura, o trabalho “O problema da proteção aos sambaquis”, que continha a minuta preparada por ele. Lá ele diz
textualmente ter considerado “conveniente que o anteprojeto de lei de nossa autoria (grifo nosso) (...) fosse
apreciado por outros colegas e por consultores jurídicos de organismos governamentais diretamente responsáveis
por sua eventual aplicação”. É bem provável que estivesse se referindo à comissão acima mencionada, embora não o
tivesse feito explicitamente. E prossegue dizendo: “consideramos agora oportuna e mesmo inadiável a sua
publicação”.
Efetivamente, no ano seguinte, em 1959, ele publicou o artigo (nota 14)
contendo o “esboço do anteprojeto de lei sobre
jazidas e escavações arqueológicas”. Nele afirmava que “o anteprojeto que apresentamos não pretende ser, na
realidade, mais que um esquema, mas inegavelmente construído de maneira objetiva, com elementos resultantes,
de um lado, de uma experiência de legislação adotada noutros países com o mesmo objetivo”. Admitindo possíveis
deficiências, entendia que sua proposta poderia e deveria ser corrigida pela Diretoria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, sem dificuldades.
De fato, o esboço de Castro Faria - construído confessadamente a partir de elementos do Código de Minas e da
Legislação Francesa (L’action de l’État a l’égard des Sciences, des Arts et des Lettres – Chapitre 87 Ar -
Fouilles Archéologiques, Fascicules de Documentation Administrative, de 06 de setembro de 1941
(nota 15)), considerada
por ele a mais avançada e coerente - é em suas linhas gerais o texto da Lei nº 3.924, com alguns ajustes e
alterações. Estes decerto foram feitos pela comissão designada pelo Ministro da Agricultura, sobretudo pelo
assessor jurídico do Ministério da Agricultura, Benjamin Campos, e também pelas diferentes instâncias e diversas
comissões do Congresso Nacional por onde o projeto de lei transitou. Na publicação de 1959, ele justificou cada
um dos artigos do seu anteprojeto, mencionando em alguns casos as fontes das quais eles foram pinçados, e assim
mostrando claramente a forma como o construiu.
O texto redigido pela comissão foi encaminhado pelo Presidente da República ao Diretor Geral do Departamento
Administrativo do Serviço Público - DASP, João Guilherme de Aragão, que fez pequenas alterações e o devolveu em
6 de novembro de 1957. Juscelino Kubitschek o encaminhou de pronto ao Congresso Nacional, acompanhado de uma
exposição de motivos. Lá, ele tramitou penosamente, lutando contra o lobby dos grupos interessados na exploração
das jazidas. Contudo, graças à ajuda de quatro deputados - Lauro Gomes, Munhoz da Rocha, Pereira Lima e Ranieri
Mazzili - o projeto foi aprovado na Câmara em 1960, seguindo para o Senado, onde foi igualmente aprovado no ano
seguinte. Com Kubitschek já fora da Presidência, a Lei nº 3.924 foi sancionada por Jânio Quadros em 26 de julho
de 1961, ficando para sempre associada ao seu nome, quando na verdade os louros pelo seu encaminhamento cabem a
JK.
Em publicação anterior
(nota 16), Pinheiro da Silva apontou a pressão política sobre a Presidência da República para
acelerar o processo, reproduzindo um bilhete do Presidente Jânio Quadros, datado de apenas dois dias antes da
aprovação da Lei. Nele solicitava a preparação de projetos de legislação para a proteção das jazidas
arqueológicas, recomendando consulta ao Sphan (na verdade, Dphan, já àquela altura promovido de Serviço a
Diretoria) e à Divisão de Antropologia do Museu Nacional (leia-se, a Castro Faria), quando o projeto de lei já
estava para ser votado no Senado. Constatado o equívoco em que incorrera por absoluta desinformação, Jânio
Quadros redigiu novo bilhete quase um mês depois, datado de 22 de agosto de 1961. Desta feita, determinando ao
Ministério da Educação “elaborar a regulamentação da Lei 3.924, e proteger os sambaquis, se for o caso, de forma
expressa”, deixando clara a pressão que sofria por providências emergenciais para o problema da exploração
comercial desses sítios.
Por esse segundo bilhete de Jânio Quadros, também reproduzido por Pinheiro da Silva
(nota 17)
, fica evidente que a Lei que
até hoje protege os sítios arqueológicos brasileiros resultou de forma direta dos crimes cometidos
especificamente contra os sambaquis, testemunhados na linha de frente por Castro Faria, Paulo Duarte e Loureiro
Fernandes em suas pesquisas de campo e incansavelmente denunciados por todos os três. Cada um deles, com seus
talentos particulares e a sua própria maneira, contribuiu de diferentes maneiras – porém decisivamente – para
que esse resultado tivesse sido alcançado: Loureiro Fernandes, como pioneiro na proteção legal em nível
estadual, fomentando no Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade do Paraná investigações em
sambaquis conduzidas por pesquisadores estrangeiros e brasileiros; Paulo Duarte, como o combativo articulador e
ponta-de-lança das ações políticas em São Paulo e no plano federal; e Castro Faria, como o pesquisador vigilante
que imprimiu rigor científico ao estudo dos sambaquis e que elaborou o texto-base da lei que se tornou o
instrumento-chave para salvar da destruição implacável não apenas os sambaquis, como originalmente se desejava,
mas todos os sítios arqueológicos brasileiros.
A mesma autora chamou a atenção para o fato de que “nas conclusões do grupo encarregado da elaboração do
anteprojeto de lei, os únicos sítios arqueológicos citados foram os sambaquis”. Mais ainda, Mario Meneghetti se
antecipou e fez publicar a Portaria nº 1.262, de 19 de dezembro de 1957, sustando as concessões para a sua
exploração comercial
(nota 18). Folhetos distribuídos à época divulgando o texto da Lei atestam isso cabalmente, pelo
destaque dado a esses sítios arqueológicos em detrimento dos demais (figura 10), deixando claro se tratar de um
processo movido todo o tempo pela forte relação e comprometimento dos três pesquisadores com seu objeto de
estudo.
Figura 10. Folheto de divulgação da Lei Federal nº 3.924 pelo Estado do Paraná, datado de 1962, informando de forma distorcida e com grande destaque que ela dispõe sobre sambaquis, quando na verdade ela “dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos”. A ênfase atesta que os sambaquis foram inquestionavelmente o leitmotiv do diploma legal que protege todos os sítios arqueológicos brasileiros. Arquivo Noronha Santos / Copedoc - Iphan / Ministério da Cultura, (Série Arqueologia, Subsérie Administração, Cx 36).
Dois anos depois da aprovação da Lei nº 3.924, em dezembro de 1963, Paulo Duarte, na qualidade agora de diretor
do Instituto de Pré-história da Universidade de São Paulo, fundado em 1959, e também da já referida Comissão de
Pré-história, enviou memorando ao Chefe da Casa Civil da Presidência da República. Nele solicitava “a adoção de
medidas importantes para a proteção efetiva do patrimônio pré-histórico e arqueológico do país”, já que, apesar
da importante conquista da Lei Federal, a destruição dos sambaquis prosseguia impavidamente. Pouco depois, em 13
de janeiro de 1964, ele indicou os seguintes nomes para compor uma comissão encarregada de elaborar o anteprojeto
da sua regulamentação: além de Rodrigo Mello Franco de Andrade e Loureiro Fernandes, Luiz de Castro Faria, agora
representando o Museu Nacional; Eduardo Galvão, do Departamento de Ciências Humanas da Universidade de Brasília;
e Noel Nutels, diretor do Serviço de Proteção aos Índios. Diante dessa composição, Rodrigo Mello Franco de
Andrade solicitou em ofício ao Ministro que fossem incluídos na comissão mais dois membros: Heloísa Alberto
Torres, àquela altura presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, e Benjamin Campos, assessor
jurídico do Ministério da Agricultura, definido por ele, no documento, como “autor principal do texto do projeto
de lei nº 3.924”, possivelmente por ter dado a ele a sua forma final com os ajustes de natureza jurídica.
Ainda que o texto da regulamentação produzido por essa comissão (ver anexo 1)
(nota 19)
tenha sido encaminhado, logo em
seguida o golpe militar de março de 1964 desarticulou as forças políticas que favoreceram a aprovação da Lei,
levando o país a um estado de exceção, e ela nunca chegou a ser regulamentada. Mesmo assim, desde então ela vem
sendo o suporte das ações preservacionistas na Arqueologia, e, sem ela, uma parcela expressiva das evidências
materiais do passado da nação brasileira já teria desaparecido.
Nos anos que se seguiram à aprovação da Lei nº 3.924, Castro Faria continuou com fortes vínculos com a
Arqueologia, não obstante seu envolvimento maior com a Antropologia, mantendo uma intensa correspondência com os
pesquisadores em atividade no Brasil. Em especial com Alan Bryan, Betty Meggers e Clifford Evans, Annette
Emperaire e Wesley Hurt. Após o trabalho de Lagoa Santa, Hurt voltou-se para os sambaquis de Santa Catarina,
com projeto financiado pela University of Indiana, National Science Foundation e Universidade de Santa Catarina,
para grande satisfação de Castro Faria, que expressou forte interesse nos seus resultados. Entre os brasileiros,
além evidentemente de Loureiro Fernandes, os arqueólogos de Santa Catarina Walter Piazza e João Alfredo Rohr,
assim como Oswaldo Rodrigues Cabral, foram seus interlocutores mais próximos e assíduos ao longo dos anos 60.
Novos profissionais que foram surgindo a essa época, como Igor Chmyz, Valentin Calderón, Maria José Menezes,
Luciana Pallestrini, Niède Guidon, Napoleão Figueiredo, André Prous, escreviam a Castro Faria e aparecem também
em sua correspondência desse período. Viagens regulares as suas áreas de estudo no Rio de Janeiro, Minas Gerais
e Santa Catarina foram mantidas até o final da década, tendo ele visitado também sítios arqueológicos no Rio
Grande do Sul.
Figura 11. Castro Faria no Sambaqui de Mar Casado, por ocasião do II Encontro de Intelectuais de São Paulo, em 25 de agosto de 1961. Foto de Eurico Th. Miller. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDN 34.10.179 F).
Seus laços com a Dphan se estreitaram, sobretudo após a saída de Heloísa Alberto Torres da direção do Museu
Nacional, em 1955. Cumpre recordar que, desde a segunda metade da década de 1930, Rodrigo Mello Franco de
Andrade e ela haviam selado um acordo de “estreita cooperação (...), uma verdadeira articulação entre as duas
entidades”. Na circunstância da falta de especialistas em Arqueologia e em Etnologia nos quadros da Dphan,
tornou-se o Museu Nacional, com seus pesquisadores qualificados, a referência para o Instituto nesses domínios
do conhecimento, privilegiados no projeto original de Mario de Andrade concebido para a instituição
(nota 20).
Ao longo da década de 1960, Rodrigo Mello Franco de Andrade apoiou-se fortemente em Castro Faria para os assuntos
de Arqueologia, que desde 1958 integrava o Conselho Consultivo do órgão. Incumbido da distribuição de verbas da
instituição para fins de “inventário, documentação e registro de monumentos arqueológicos e pré-históricos”, ele
as repassava para os arqueólogos em atividade no país, especialmente para os que estavam investigando os
sambaquis.
Figura 12. Destruição acintosa do Sambaqui de Congonhas, em Tubarão, Santa Catarina, para exploração econômica, documentada por Castro Faria em 23 de novembro de 1964, três anos depois de sancionada a Lei nº 3.924/61. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDA 07.03.042 F).
Figura 13. Caieira em Jaguaruna, Santa Catarina, alimentada por conchas provenientes do Sambaqui da Carniça, documentada por Castro Faria em 24 de novembro de 1964, três anos depois de promulgada a Lei nº 3.924/61. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDA 07.03.047 F).
Executados os trabalhos, as prestações de contas desses profissionais eram encaminhadas não ao Instituto, mas
diretamente a Castro Faria, o que atesta a centralidade das suas atribuições. Entre outros, ele produziu para a
Dphan, em 1962, um documento de referência para o estabelecimento de normas para a exploração das jazidas
arqueológicas (anexo 2)
(nota 21); em 1965, encaminhou um modelo de ficha para registro de sítios arqueológicos, além de
ter emitido inúmeros pareceres sobre assuntos de Arqueologia que chegavam ao órgão. Todas as diretrizes para a
área emanavam dele, que orientava seguidamente o Presidente da Dphan quanto à interpretação e aplicação da Lei
nº 3.924, não obstante ocupando a direção do Museu Nacional entre 1964 e 1967.
Mesmo após a aposentadoria de Rodrigo Mello Franco de Andrade em 1967 e sua substituição por Renato Soeiro,
Castro Faria se manteve como referência para a área de Arqueologia, apesar de ter deixado o Conselho Consultivo
ao ser substituído na direção do Museu Nacional e, por conseguinte, no referido Conselho, pelo zoólogo José
Lacerda de Araújo Feio. Em ofício encaminhado aos diretores do Centro Brasileiro de Arqueologia em 22 de abril
de 1969, respondendo a denúncia de escavações e coleta de materiais em sítio pesquisado pela instituição,
Soeiro, como presidente da Dphan, afirmou que “só ele (Castro Faria) pode(ria) realizar pesquisas sem autorização
expressa desta Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. Essa declaração atesta a dimensão de
Castro Faria no órgão e o prestígio que ele desfrutava então junto à Diretoria, como seu Conselheiro para
Assuntos de Arqueologia.
Essa situação parece ter perdurado enquanto os laços de Castro Faria com a Arqueologia foram mantidos. A partir
do momento em que eles começaram a afrouxar, o mesmo movimento parece ter sido feito por parte do agora Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN
(nota 22).
Soeiro tinha colocado como seu assistente, na
presidência, o museólogo Alfredo Teodoro Rusins, que pouco a pouco começou a responder pela área, não obstante
encaminhar os assuntos de Arqueologia para Castro Faria opinar. A partir de 1970, contudo, ele se tornou
efetivamente o responsável pela Arqueologia no âmbito do Instituto, passando a organizar a condução de pesquisas,
o cadastramento de sítios e a documentação existente no Arquivo Central da instituição, selando-se desta forma o
distanciamento de Castro Faria do Instituto. Ao longo dos anos setenta, ele continuou mantendo sua
correspondência com o Iphan, porém tão somente remetendo relatórios de pesquisadores sob sua orientação, como os
de Lina Maria Kneip. À frente do Setor de Arqueologia do Museu Nacional ficou Maria da Conceição de Moraes
Coutinho, posteriormente Beltrão, orientada por ele em seus primeiros passos na Arqueologia, aluna de cursos do
CEPA e discípula de Annette Emperaire. Pouco depois ela se tornaria Professora Titular da disciplina,
permanecendo por cerca de três décadas como responsável pela Arqueologia do Museu Nacional.
A essa altura, fica visível a inflexão do seu interesse acadêmico, voltado agora exclusivamente para a
Antropologia, tendo Castro Faria deixado para trás a atividade febril e intensa militância que caracterizaram sua
atuação na Arqueologia nas décadas anteriores. Em sua correspondência, a partir de 1971, quando se tornou
Professor Titular, sucedem-se as recusas para participar de eventos e pesquisas em Arqueologia: ora
posicionando-se contrariamente, como no caso de um convite feito por Paulo Duarte para participar de um simpósio
sobre as Origens do Homem Americano em reunião da SBPC, ora pesarosamente declarando-se assoberbado a Pedro
Inácio Schmitz, que o convidara a ver e discutir seus materiais de pesquisa no Rio Grande do Sul.
Em documento sem data, mas, ao que tudo indica, do início da década de 1970, onde analisa a influência que
exerceu a partir dos vários cargos que ocupou sucessivamente como chefe da Divisão de Antropologia do Museu
Nacional, por dez anos; como Diretor do Museu Nacional, por três anos; como Membro do Conselho Universitário da
UFRJ, por quase dez anos, com interrupções, Castro Faria assim definiu sua atuação profissional àquela época:
“um esforço contínuo em sentido renovador, e ao mesmo tempo de modernização, ampliação e valorização da
Antropologia Brasileira, quer como área de ensino, quer de pesquisa. Esse esforço pessoal foi talvez mais
sensível na área de Antropologia Física e Arqueologia, ainda hoje as menos atendidas em termos institucionais”
(nota 23).
Ao final da década de 1970, a medida do seu distanciamento da Arqueologia pode ser avaliada através daquelas que
ele definiu então como suas linhas de pesquisa: Sociologia da Produção Intelectual, Pensamento Social Brasileiro
e Antropologia Econômica. Daí em diante, a relação de Castro Faria com a Arqueologia foi a de um observador
distante, porém atento e sobretudo crítico aos rumos da disciplina.
Figura 14. Castro Faria no pátio interno do Museu Nacional, tendo ao fundo as dependências do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, PPGAS. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDN 34.10.184 F).
Hoje, decorrido meio século de seus estudos e reflexões sobre o fenômeno dos sambaquis, impressiona a atualidade
de muitas de suas idéias, infelizmente ainda não absorvidas por alguns pesquisadores. Em particular, a que
defende a diversidade sociocultural das populações litorâneas pré-históricas, quando estudos recentes no Brasil
ainda insistem em abordá-las sob a ótica da homogeneidade, considerando-as como um único e mesmo grupo.
Ainda hoje há quem insista na utilização do termo sambaqui para designar sítios arqueológicos litorâneos
resultantes de processos socioculturais muito distintos. Mascara-se assim sob um mesmo rótulo homogeneizante
diferentes fenômenos, na contramão da tendência mundial da disciplina, que a cada dia refina mais e mais suas
teorias, métodos e técnicas, bem como sua sensibilidade, para melhor apreender a heterogeneidade e a diversidade
sociocultural no passado, tão bem percebidas por Castro Faria.
Para os arqueólogos brasileiros, ele se tornou - junto com Loureiro Fernandes e Paulo Duarte - símbolo de uma
geração pioneira, idealista e combativa, que lutou com bravura pela defesa incondicional do nosso passado,
deixando como seu maior legado o mais poderoso instrumento de que dispomos para a proteção do patrimônio
arqueológico brasileiro: a Lei Federal nº 3.924, pela qual eles tanto se empenharam. Uma conquista que permite
a todos nós, hoje, exercer com dignidade o ofício de apresentar às gerações atuais e preservar para as futuras o
que restou do nosso passado.
Figura 15. Castro Faria em sua mesa de trabalho e biblioteca particular, na sua residência, ao completar 90 anos, em 2003. Fundo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia/ MCT (CFDN 34.10.196 F).
In Memoriam
À memória do Prof. Castro Faria, com profunda gratidão.
Agradecimentos
Ao Conselho Curador do Acervo Castro Faria, Arquivo de História da Ciência do Museu de Astronomia e Ciências
Afins/ Ministério da Ciência e Tecnologia, em especial a Heloísa Bertol Domingues, e a Juliana da Cunha Alves
Pereira, bolsista PCI/MCT da Coordenação de História da Ciência da mesma instituição. Ao Arquivo Noronha Santos,
Coordenação Geral de Pesquisa, Documentação e Referência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional /Ministério da Cultura; e a Regina Coeli Pinheiro da Silva, do Departamento de Proteção Material e
Fiscalização também do Iphan/MinC, pela interlocução sempre enriquecedora, e por ter solidariamente mergulhado
comigo nas pastas do Arquivo Noronha Santos.
Anexos a serem editados:
1. Decreto
2. Projeto modelo de pesquisa
3. Relatórios de pesquisa
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